Luanda - Durante o verão de 1921, Nkamba transforma-se no coração pulsante de uma revolução espiritual que inquieta cada vez mais a ordem estabelecida. Dia após dia, colonizados continuam a afluir, entoando cânticos novos, cujas palavras em kikongo nascem de uma fé ardente. “Nsilu-a-Nzambi”, A Promessa de Deus, cantam em coro, convencidos de que o céu visitou finalmente a sua terra abandonada. No centro dessa fervorosa maré humana, Simon Kimbangu, Bíblia na mão, ensina sem descanso. Fala do Evangelho com palavras compreensíveis para camponeses, mineiros, para “os pequenos” da colónia. Recorda-lhes que Jesus está do lado dos oprimidos e que nenhuma raça é maldita aos olhos de Deus. Aos aldeões kongo que ainda conservavam feitiços ancestrais por sincretismo, pede que renunciem a amuletos e encantamentos: “Cristo é todo-poderoso, liberta do medo”. Aos convertidos polígamos, impõe que conservem apenas uma esposa, desafiando os costumes locais em nome de uma moral cristã rigorosa. Acima de tudo, exorta à fé no Deus único, Nzambi, que não é uma divindade distante dos brancos, mas o Pai de todas as nações. A assembleia responde com Aleluias estrondosos, batendo palmas ao ritmo dos tambores sagrados. Para estes africanos humilhados no quotidiano, a voz do profeta Kimbangu é bálsamo e orgulho reencontrado: Deus fala também kikongo, Deus opera também milagres em África.
Fonte: Club-k.net
Os relatos dos milagres de Nkamba espalham-se como rastilho de pólvora. Uma criança moribunda curada por simples imposição das mãos; uma mulher estéril que teria concebido após a oração de Kimbangu; estropiados que se erguem e caminham... Cada testemunha regressa à sua região trazendo histórias extraordinárias. Alguns comparam já Simon Kimbangu aos apóstolos dos primeiros tempos, ou mesmo a Jesus. Chamam-lhe Ntumwa-a-Nzambi, o Enviado de Deus. Outros, mais ousados, veem nele a reencarnação do Espírito Santo prometido nas Escrituras. A missão protestante britânica, de onde Kimbangu provém, afasta-se deste discípulo tornado excessivamente fervoroso; a Igreja Católica rotula-o de perigoso iluminado. Nada, porém, detém a maré dos fiéis. Em poucos meses, a comunidade de Kimbangu reúne dezenas de milhares de adeptos por todo o país kongo. Surgem células espontâneas de oração noutras aldeias, onde se cantam os hinos aprendidos em Nkamba. Uma verdadeira Igreja independente está em gestação, embora sem qualquer plano concertado: trata-se de um movimento popular, levado pela esperança e pela exaltação. Para os colonos belgas, este despertar místico começa a assemelhar-se a uma rebelião latente. Que pretendem estes negros? Fugir ao trabalho? Conspirar sob a capa da religião?, inquietam-se os administradores. Em privado, alguns falam já de um “Garvey do Congo”, numa alusão ao pregador negro americano Marcus Garvey, que na mesma época proclama a união dos povos negros à escala mundial. O temor de uma contaminação pan-africana apodera-se do governo colonial.
Perante a amplitude do fenómeno, as autoridades tentam primeiro medidas administrativas e sanitárias. Proíbe-se o transporte de doentes para Nkamba, invocando o risco de epidemia. Colocam-se sentinelas nas encruzilhadas para dissuadir deslocações. Nada resulta: os peregrinos atravessam o mato, desafiando os interditos para vislumbrar o profeta em acção. Em junho de 1921, a administração passa à repressão aberta. É emitido um mandado de captura contra Simon Kimbangu por atentado à ordem pública. A 21 de junho, polícias indígenas enquadrados por agentes belgas chegam a Nkamba para deter o profeta. Mas Kimbangu fora avisado; recusando o confronto, abandona discretamente a aldeia pouco antes da chegada das forças da ordem. Em Nkamba, frustrados, os agentes anunciam aos fiéis que o seu guia é agora fugitivo e que quem o esconder será severamente punido. Simon Kimbangu inicia assim uma vida de clandestinidade. Durante quase três meses, refugia-se em casas amigas, deslocando-se de noite de aldeia em aldeia. É assinalado nas proximidades de Léopoldville, na povoação de Nsanda, onde continua a pregar discretamente. Os seus fiéis, desorientados pela ausência do guia, tornam-se mais ardentes e talvez mais radicais. Privados da sua presença, alguns interpretam os seus ensinamentos à sua maneira: circulam rumores de discípulos que teriam visões belicosas, em que anjos distribuiriam em breve espingardas para expulsar os brancos do Congo. Diz-se que Kimbangu, embora continue a aconselhar a submissão às autoridades e o pagamento dos impostos, já não consegue conter o ardor nacionalista nascente. O movimento, nascido místico, adquire apesar de si uma coloração política aos olhos do poder colonial. E esse poder decide que é preciso agir com rapidez e severidade.
A 12 de setembro de 1921, Simon Kimbangu sai da sombra e entrega-se voluntariamente às autoridades em Nkamba. Com dignidade, explica que não quer que a sua ausência provoque violências entre o seu povo. Preso, algemado, é imediatamente levado perante um tribunal militar, como um criminoso de Estado. O julgamento sumário teve lugar a 3 de outubro de 1921, em Thysville (Mbanza-Ngungu). Em poucos dias, cai o veredicto, implacável: culpado de perturbar a paz pública e incitar à rebelião. O profeta de Nkamba é condenado à morte. Na sala, um murmúrio de horror percorre os espectadores congoleses. Às portas do quartel, centenas de partidários choram ou rangem de cólera contida. Os jornais coloniais belgas, por seu lado, congratulam-se ruidosamente com a severidade da sentença. “O feiticeiro negro foi vencido”, proclama L’Avenir Colonial. O pânico apodera-se da comunidade branca: metralhadoras são colocadas à entrada dos bairros indígenas de Léopoldville e de Matadi, temendo-se que a notícia da execução provoque uma insurreição generalizada. Embora tenha sempre pregado a não-violência, a simples aura de Kimbangu fez tremer o governo colonial. Felizmente, Simon Kimbangu escapa por pouco ao pelotão de fuzilamento. A partir de Bruxelas, o rei Alberto I, interpelado por missionários protestantes horrorizados com a perspectiva de um mártir cristão, comuta a pena de morte em prisão perpétua. O profeta é então enviado a mais de dois mil quilómetros do seu Nkamba natal, para o extremo sudeste do Congo, onde deverá cumprir a pena. É encarcerado na prisão central de Elisabethville (actual Lubumbashi), longe da família e da sua terra, para que ninguém mais possa ouvir falar dele. O “fogo interdito” parece assim sufocado pelo tacão de ferro colonial. Durante trinta longos anos, Simon Kimbangu definhará na sua cela, sem jamais voltar a ver o céu de Nkamba.
Ricardo VitaHeadhunter e observador pan-africanista