Luanda - As condecorações dos 50 anos da Independência eram, em tese, para ser algo raro, solene, quase sagrado. A própria lei aprovada pela Assembleia Nacional falava em privilégio reservado a poucos, como se fosse o ingresso exclusivo para um templo da glória. Mas Angola, esse país de improvisos eternos, conseguiu transformar um ato simbólico em verdadeira distribuição de brindes de supermercado. Hoje, quem não recebeu a sua medalha quase sente que foi esquecido pelo carteiro.
Fonte: Club-k.net
Homenagens, outrora reservadas a feitos históricos, transformaram-se em lembrancinhas de festa. Já não se distingue quem lutou, quem construiu, quem transformou, de quem apenas esteve por perto, tirou uma fotografia ou deu um aperto de mão na hora certa. Os critérios? Ah, os critérios. Subjetivos, nebulosos, quase poéticos. Como aqueles concursos de beleza onde ninguém entende por que razão a vencedora não era, afinal, a mais bonita.
No Japão feudal, o samurai só recebia a honra do seu senhor depois de provar, no campo de batalha, a disciplina da espada e da alma. No império Inca, as condecorações não eram dadas ao acaso: eram oferecidas a quem literalmente sustentava o império com feitos agrícolas, militares ou espirituais. Até os Maias tinham rituais rigorosos para distinguir os extraordinários dos meramente simpáticos.
Mas em Angola, não. Aqui, a excelência parece ser medida pela proximidade ao poder ou, em alguns casos, pela capacidade de sorrir quando as câmaras de televisão ligam. É como aquele conto africano em que o rei, cansado de distinguir os guerreiros, decidiu premiar até o papagaio que repetia palavras bonitas na corte. Resultado? O pássaro foi homenageado, os guerreiros esqueceram a honra, e a nação mergulhou na farsa.
O Presidente, cuja imagem pública anda mais fosca do que panela velha, parece apostar nas medalhas como se fossem verniz: algo para dar brilho rápido a uma reputação já bastante contestada. A lógica é simples, se o povo desconfia, distribui-se reconhecimento como quem distribui pão em tempo de fome. Só que, no final, fica o sabor amargo da banalização.
A certa altura, será inevitável perguntar: por que não entregar uma medalha a cada um dos mais de 34 milhões de angolanos? Se não sabemos sequer quantos somos, por falta de censo, tanto faz: 34, 40 ou 50 milhões de medalhas, todas alinhadas em filas intermináveis no Palácio. O protocolo abriria portas: “Próximo! Eis a sua medalha por sobreviver em Angola, onde a paciência é virtude e a resistência é façanha.”
Porque sejamos honestos: viver neste país já é, por si só, um ato de heroísmo. O angolano que resiste ao preço do pão, ao transporte caótico, ao salário que evapora antes de chegar, ao hospital que não cura e à escola que não ensina, esse sim é digno de medalha. Não uma, mas várias. Medalha de Ouro pela Resiliência, Medalha de Prata pela Esperança, Medalha de Bronze pela Criatividade de sobreviver ao improviso.
Enquanto isso, em países que levam a sério o mérito, a escolha é criteriosa. Os Estados Unidos, por exemplo, reservam a Medalha da Liberdade a figuras que moldaram a cultura ou salvaram vidas. Na Índia, o Bharat Ratna é dado a quem elevou a nação inteira. Em Cuba, nem Fidel distribuía medalhas com tanta facilidade e olhem que ali a liturgia da homenagem também servia à política.
Por aqui, o excesso mata o sentido. É como dizia um velho provérbio asiático: “Quando todos são nobres, ninguém é nobre.” Angola, com as suas medalhas abundantes, está a transformar o extraordinário no banal, o honroso no protocolar, o raro no vulgar.
Talvez, para ser justo e coerente, o Presidente devesse mesmo proclamar: “Condecoro todos os angolanos, porque resistir a Angola é maior do que qualquer feito individual.” Aí, sim, seria sincero.
Até lá, seguimos a brincar às homenagens, como crianças que trocam cromos repetidos num pátio de escola, só que aqui o pátio chama-se Nação, e a lição que fica é que a glória perdeu o valor da raridade.
Por: Horácio dos Reis | Jornalista